Cabo Verde: Interview with Judite Nascimento

Judite Nascimento

Reitora da Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde (Universidade de Cabo Verde - UniCV)

2016-09-23
Judite Nascimento

Atualmente Cabo Verde está a atravessar por um momento único, com uma mudança na liderança do país, e tem desafios muito importantes pela frente. Segundo a Senhora Reitora, quais são os desafios que Cabo Verde tem que resolver no futuro imediato no sector do ensino superior?


Um dos desafios que nós vamos ter de enfrentar são os impactos da crise internacional em Cabo Verde, que estão a ser visíveis agora e que nos chegam em efeito de onda. Já foi mais forte na Europa e agora está a arrastar-se para Cabo Verde, onde nós estamos a sentir os seus efeitos nos últimos dois anos.

Ao nível do ensino superior, o nosso maior desafio são as receitas pois estamos numa tendência para a redução das mesmas. As famílias têm menos condições para contribuir para as mensalidades dos filhos. E isto para nós é um indicador de que a crise está a afetar as famílias. E eu penso que este é o nosso grande desafio num futuro próximo.

Para contornarmos os efeitos da crise, temos que desenhar estratégias que permitam a economia crescer e que permitam criar empregos para os jovens e, certamente, contribuir para uma melhoria das condições de vida das famílias que, consequentemente, fará com que essas mesmas famílias possam arcar com os seus compromissos financeiros e assim levar ao desenvolvimento da economia.

Ao nível do ensino superior, o grande desafio vai ser o governo ajudar-nos a conseguir desenhar um modelo que permita à universidade ter um pouco mais de segurança no financiamento do seu funcionamento. Atualmente, o sistema prevê uma comparticipação pública do Estado. Considerando que o montante é fixo, à medida que os desafios da universidade crescem a percentagem da comparticipação do Estado acaba por ser menor. Este é um grande desafio.

No que toca à Universidade, as nossas estratégias são, por um lado ver se conseguimos, criar programas que permitam aos estudantes adquirir algumas competências técnicas, e que possam aceder rapidamente ao mercado de trabalho para poderem pagar as receitas.
Por outro lado, nós estamos a reforçar a Universidade de forma a que possa participar em eventos internacionais cada vez com mais pró-atividade, mas também desempenhando um papel mais significativo no quadro dos projetos em que participa, para que também consiga receitas através desses projetos.
Outra estratégia que nós estamos a implementar é a conquista de amigos da Universidade. Portanto, negociar com empresas e com entidades que possam apoiar a Universidade com parcerias ou no quadro de acordos de parcerias, com contrapartidas de ambas as partes.


A UniCV cumpre este ano 10 anos de história. Mesmo se já existiam algumas estruturas de ensino precedentes, a UniCV é uma instituição, a única Universidade pública do país, que foi criada em 2006. Desde então, a Universidade tem crescido e o ano passado até abriu o Curso de Medicina pela primeira vez. Poderia nos explicar resumidamente a trajetória da Universidade de Cabo Verde?


A universidade pública nasce oficialmente com o decreto-lei que a cria. Nós, que sempre estivemos nas instituições que antecederam a universidade, consideramos que ela teve uma história muito mais longa de que a sua história de 10 anos.

O embrião da universidade surgiu em 1979 quando se criou em Cabo Verde o curso de formação de professores do ensino superior. Era o primeiro curso pós secundário que se criava em Cabo Verde e o embrião desta universidade. Esse curso de formação de professores foi evoluindo para dar o Instituto Superior de Educação (ISE), que veio a integrar a UniCV em 2006.

Então, formou-se o famoso Instituto Nacional de Administração e Gestão (INAG), que era o centro de formação, por um lado, para formar quadros para o ensino secundário no país e, por outro lado, formar quadros para a função pública. O INAG integrou a UniCV. como aconteceu com o Instituto Superior de Engenharia e Ciência (ISECMAR) em 2006. Para além dessas, também temos uma unidade orgânica na área de agronomia, que surge da fragmentação do Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário (INIDA), que ficou só com a parte da administração, integrando a parte de formação na UniCV quatro anos atrás.

A partir de 2006 transformamo-nos em Universidade, e as dimensões dos desafios são diferentes e a diversificação de cursos foi muito maior. Teve que se fazer uma grande reforma a nível dos currículos que previam Licenciaturas. Deixamos de oferecer Bacharelatos e passamos a oferecer Licenciaturas, Mestrados e agora, Doutoramentos.

A internacionalização começou com a vinda de professores de outras universidades, com os programas de estudo que vieram implementar na UniCV. Houve ao longo do tempo uma aposta muito forte dos professores da UniCV fora do país. Os nossos concursos para recrutamento de professores são internacionais e há uma grande diversidade no que respeita ao nosso corpo docente.


Qual é a oferta formativa com que conta atualmente a Universidade de Cabo Verde?


Há sempre alguma coisa a acontecer nesta universidade a nível de extensão universitária, sobretudo relacionada com os resultados da investigação. Uma boa parte desses eventos é internacional, portanto, envolvem pessoas de fora do país.
Ao nível da línguas nós realizamos uma grande divulgação de línguas e apostámos na criação dos institutos, para podermos capacitar as pessoas. Temos o instituto de língua francesa, instalamos o Confúcio, temos o instituto de língua inglesa, um centro de língua portuguesa do Instituto Camões e já criamos o instituto de língua cabo-verdiana.

Por outro lado, no que diz respeito ao desenvolvimento da ciência, nós estamos a formar nossos docentes com nível de doutoramento. É uma aposta muito grande da Universidade que não tem muitos recursos, mas concentra uma parte na formação dos docentes para criar condições para desenvolvermos as ciências. É nesse quadro que nós temos dois grandes centros de investigação: o Centro de Investigação e Formação em Género e Família e o Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento do Território. Para além desses dois centros, temos quatro cátedras e vários núcleos de organização que acabam por agrupar um numero de trabalhadores que desenvolvem pesquisas de investigação, normalmente internacionais.

A nossa grande aposta este ano vai ser a Casa da Ciência. Já temos uma Casa da Ciência em São Vicente. A Casa da Ciência estava no Ministério de Ensino Superior, agora vai ser transferida, para a UniCV. Irá permitir aos nossos trabalhadores, conseguir desenvolver ideias e trazer à comunidade para dentro da nossa universidade, para conhecer mediante visitas à Casa da Ciência e ter um contato com a ciência e desenvolver o gosto por ela mais prematuramente.

Uma outra grande aposta com impacto e cujos efeitos já se fazem sentir é a criação na UniCV de um TWINLAB, um centro de referência de investigação científica no domínio das ciências da vida e da natureza da Universidade do Porto que presta serviço a nível internacional. O que nós queremos é capacitar quadros através desses projetos para que, depois, venham assumir a liderança da investigação feita neste laboratório.


Poderia nos falar do novo curso de medicina aberto no ano passado?


O novo curso de Medicina, é um dos resultados e exemplos de parcerias internacionais. O curso de Medicina foi desenhado com a parceria da Universidade de Coimbra e tem três fases. A primeira fase funciona aqui, na UniCV e é de três anos. Nós temos uma parceria forte com a Universidade de Coimbra que permite aos professores de Coimbra virem e lecionarem os módulos em parceria com assistentes nacionais. Esses assistentes estão a ser formados, estão a ser capacitados a virem mais tarde a assumir como dirigentes as disciplinas.
A segunda fase é de dois anos e vai ter lugar na Universidade de Coimbra.
E a terceira e última fase vai acontecer aqui em Cabo Verde. Eles realizarão módulos dos trabalhos que terão de apresentar no final do curso.

Nós tínhamos um problema das práticas anatómicas, porque a nossa legislação ainda não permite a dissecação de cadáveres, mas nós conseguimos colmatar a lacuna com uma parceria também muito forte com a Universidade da Laguna em Tenerife: conseguimos que os nossos 25 estudantes e quatro professores de Medicina, do primeiro ano, fizessem práticas anatómicas durante três semanas no quadro do programa campus África.
Temos também relações com a Universidade de Grã Canária de Las Palmas de Grã Canária. Temos uma parceria forte com a Universidade de Vigo: inclusive temos um doutoramento internacional com eles. O doutoramento funciona entre as duas universidades com professores de lá e daqui no campo das ciências do mar (oceanografia). E temos também um doutoramento internacional, esse é outra grande estratégia, no quadro da internacionalização da universidade é desenhar projetos internacionais em que haja participação de várias instituições.


A internacionalidade é, portanto, um dos valores da UniCV. É um valor que está na alma de Cabo Verde e também da UniCV já que desde o começo contou com a colaboração de universidades brasileiras e portuguesas. Poderia nos falar mais das parcerias internacionais com as que conta a universidade e como os alunos podem beneficiar delas? Estão à procura de novas parcerias internacionais?


O nosso pacote de parcerias é de 208 protocolos, incluindo protocolos com empresas e instituições nacionais e parcerias internacionais. A internacionalização é um desafio que a própria universidade está a enfrentar dado o contexto em que nós vivemos. Sabemos que o mundo lusófono é muito fechado sobre si mesmo e nós temos a maior parte da nossas parcerias viradas para Portugal, Brasil e Espanha, dada a proximidade do espanhol ao português. Neste momento, o que nós estamos a fazer e aposta muito forte nas línguas. Nós estamos a instalar os institutos de línguas através dos quais nós iremos tentar oferecer à comunidade académica e à sociedade a oportunidade de poderem frequentar cursos nas várias línguas e, assim, prepararem-se para contactos internacionais, participação de eventos ou, mesmo, facilitar as relações com parceiros internacionais.

Nós temos neste momento parcerias com os Estados Unidos, a mais forte é com a Bridgewater State University. Ainda só temos contactos com alguns professores da Harvard da área da saúde e da área das línguas. Mas não temos uma parceria assinada com essa universidade.

Também temos três doutoramentos: aquele de Ciências Sociais está a funcionar com uma parceria forte do Brasil, mas também com alguns professores que vêm da Bélgica e da França; o doutoramento em Oceanografia, que funciona com professores que vem de vários países, mas com uma forte incidência do Campus do Mar da universidade de Vigo, na Espanha; o doutoramento em Políticas Ambientais que tem professores de toda a CPLP [Comunidade de Países de Língua Portuguesa]: a Universidade Agostinho Neto em Angola, a Universidade Eduardo Mondlane em Moçambique, a UniCV, as Universidades de Évora, de Aveiro, o Instituto Politécnico de Tomar, a Universidade Nova de Lisboa. Desses cursos de doutoramento vão sair alguns professores da UniCV. A medida que vamos avançando conseguimos criar condições para formar aqui no país professores para a nossa universidade.


A relação universidade-empresa é sempre polémica. Qual é a sua visão dessa relação? Tem parcerias com empresas locais ou estrangeiras para aproximar o mundo da universidade ás necessidades do mundo empresarial?


Nós neste momento estamos a desenhar essas parcerias. Já temos assinadas algumas parcerias e elas têm dado muito bom resultado. Parcerias que permitem aos nossos estudantes fazer estágios profissionais e académicos nas empresas. Muitos deles acabam por ficar como funcionários. Fazem um estágio académico, depois um estágio profissional e depois acabam por ser contratados, o que é uma forma muito sustentável de garantir essa relação. Ainda não estamos com muitas empresas, dada a nossa capacidade de apresentar contrapartidas, mas continuamos a negociar com várias e eu penso que com o tempo, vamos ter um bom pacote de empresas parceiras.

Essas empresas também contribuem com bolsas de mérito académico, bolsas de mérito cívico, bolsas alimentares,... que a universidade atribui. Nós temos negociado, por exemplo, com a empresa que explora a cantina do nosso maior campus para que alguns estudantes possam trabalhar na cantina e assim ter direito a uma alimentação.

Nós temos também alguns serviços que podemos prestar ás empresas como contrapartidas. Serviços no quadros dos protocolos ou no Gabinete de Comunicação e Imagem que é muito bom e tem estado a trabalhar neste sentido.


Nos anos 2014 e 2015 a Universidade de Cabo Verde foi incluída entre as 100 melhores de África, só superada pela Universidade Eduardo Mondlane em países de língua portuguesa, segundo a ICU. Qual é o segredo para que uma universidade tão jovem como a UniCV obtenha esse resultado e quais são as medidas que a UniCV está a implantar para mantê-lo e superá-lo?


Foi uma surpresa porque somos uma universidade muito pequena e muito jovem. Eu penso que foi conseguido pelo fato de nós perseguirmos a internacionalização e a excelência e de nós estarmos sempre a procura de melhorar os nossos processos. Mas nesse aspeto, eles têm toda a razão ainda não há nenhuma universidade que tenha ou ofereça a qualidade que nós oferecemos atualmente.

Temos essa relação com esses países que já têm universidades com história. A universidade não teve de ser começada do zero; ela já começou com algum know-how que vem desde instituições que a integraram. Portanto, essa longa história dessa jovem universidade deve ter muito a ver com o fato de nós termos atingido muito rapidamente, em menos de 10 anos o nível de excelência e internacionalização que temos.

Além da história e competências que estão aqui reunidas, temos uma vantagem muito grande que é a juventude da nossa academia. Os professores, os dirigentes, são todos jovens. É uma vantagem comparativa e competitiva da universidade dado que, por inerência, traz energia, traz vitalidade, traz animação, traz criatividade e dinâmica.
Cada um de nós vem de um país totalmente diferente do outro. Nós nos formamos no mundo inteiro e temos aqui reunidas pessoas que vêm com conhecimentos de ensino diversificados: cada um de nós sozinho tem de uma a três experiências internacionais: significa que fez a licenciatura algures e depois fez o mestrado algures e depois fez o doutoramento algures.

O outro grande valor são as parcerias que nós desenvolvemos internacionalmente. É uma cumplicidade que vem desde há muitos anos. Criam-se relações ente os dirigentes, entre as instituições, entre os professores e investigadores e isso acaba provocando um efeito multiplicador positivo sobre todo o sistema. Isso é uma mais-valia: a cooperação internacional é o segredo do desenvolvimento rápido da universidade, porque essa cooperação permite que nós nos formemos, que nós acabemos por ir fazer doutoramentos e mestrados no quadro de parcerias institucionais.


A Senhora é um exemplo de um professor formado internacionalmente e cujas experiências são vertidas na Universidade de Cabo Verde: é formada na Ucrânia soviética, em Portugal e em França. Qual é a principal diferença entre esses sistemas de ensino?


A principal diferença é a ponderação que se faz entre a teoria e a prática. O sistema soviético associava sempre a prática à teoria. Portanto, tudo aquilo que aprendemos em teoria, tem de se saber fazer na prática. Uma forte incidência também na criação da ciência, do estudar para criar novidade.
Depois fiz o mestrado no sistema português, que me trouxe também varias valências que não tinha adquirido no sistema anterior.
Acabei com o doutoramento no sistema francês onde adquiri uma outra vivência e um outro sistema que tem outras valias. Pude aportar as vivências que tive com os meus colegas e partilhar experiências.
Se conseguirmos trazer essas experiencias à UniCV e que elas tenham impacto na nossa universidade, conseguiríamos desenvolver a UniCV ainda mais rapidamente.


Como a Senhora sabe, a audiência da HBR é composta de CEOs, diretores e líderes políticos muito interessados nas boas praticas de gestão. Um bom gestor ou líder não depende somente da formação, mas tem que ter adquirido também uma série de soft skills. Segundo a Sra. Reitora, quais são as características que fazem um bom líder e um bom gestor?


Um bom líder tem de conhecer o sistema, mas também tem de conhecer a diversidade de perfis que tem sobre a sua gestão.

Por outro lado tem de saber comunicar com quem está a gerir. E tem de gerir com as pessoas e não gerir as pessoas. O que nós temos tentado fazer é isso: gerir com as pessoas e criar um sistema que involucre as pessoas no processo de decisão. Para isso a UniCV tem vários concelhos.
Nós temos o Concelho da Universidade, que é a representação de todos os atores: docentes, estudantes, funcionários, presidentes das unidades orgânicas, a equipa reitoral, os presidentes do Concelho Científico e do Concelho Pedagógico. Portanto, esses concelhos são democráticos e as decisões são tomadas em consenso por votação. Temos também o Concelho Administrativo, que também vota em diversos sectores que têm a ver com gestão, com as finanças e com os recursos humanos.

Relativamente a uma terceira característica, um bom líder tem que conseguir desenhar estratégias e conseguir levar as pessoas a aderir e a implementar. É um desafio para qualquer líder, sobretudo para uma universidade como a nossa, onde há várias experiências e cada um quer fazer da sua experiência a melhor. A característica de um bom líder é conseguir gerir essa diversidade de opiniões e conseguir criar algo que seja participativo e útil à instituição.
É isso o que nós temos estado a tentar fazer, com nosso Plano de Gestão que foi desenhado pela comunidade, criando grupos de trabalho que elaboraram um documento de base para que fosse trabalhado pela Reitoria com uma acessória externa.
Os novos estatutos da UniCV também foram feitos da mesma maneira. Portanto, houve uma monção inicial, que foi lançada à comunidade e discutida com a comunidade e o resultado final foi o resultado de uma discussão com todos: estudantes, funcionários e professores. Andamos por cada uma das unidades orgânicas e construímos um instrumento que depois apresentamos ao governo.
Essa é a minha ideia de liderança.


An interview conducted by Alejandro Dorado Nájera (@DoradoAlex) and Diana Lopes.