Cabo Verde: Interview with Sua Excelência Abraão Vicente

Sua Excelência Abraão Vicente

Ministro da Cultura e Indústrias Criativas República de Cabo Verde (Ministério da Cultura e Indústrias Criativas)

2016-09-12
Sua Excelência Abraão Vicente

O Governo, formado na sua maioria por ministros do partido Movimento para a Democracia (MpD), assumiu as suas responsabilidades em Abril 2016 depois de 15 anos na oposição. Quais são os desafios, de um ponto de vista geral, que Cabo Verde tem no futuro mais próximo?

O principal desafio é a mudança de mentalidade.

Temos um conjunto de recursos humanos que sobrelotaram o Estado, que é o principal empregador, mas o nível de produtividade des muitos desses quadros é baixíssimo. E isto deve-se essencialmente à atitude geral.
Não se criou uma máquina pública que tenha como espírito o trabalho duro, a disciplina e a eficiência, que é o que nós pretendemos fazer. Neste sentido temos de introduzir sistemas de avaliação, sistemas de produtividade e temos que premiar aqueles que trabalham mais e que têm melhores resultados.
O desafio é exatamente incutir nas administração pública cabo-verdiana e no funcionamento das instituições a ideia que pertencermos a um mundo globalizado com as mesmas possibilidades de ter acesso à informação que um americano ou um europeu, mas temos de estar habilitados e ter as capacidades para aproveitar essas oportunidades e concorrer a nível internacional.

Nesse sentido as nossas empresas também não estão preparadas para competir. Cabo Verde não tem nenhuma empresa que esteja num ranking de empresa altamente produtiva ou competitiva ou inovadora. Somos muitas vezes referidos pela boa governação, pela ausência de inquietações e revoltas sociais; isso é muito bom, mas nós como governo queremos mais.

O que nós encontramos também é um país em que a própria sociedade é um bocado apática. Basicamente nós queremos uma nova atitude em que tudo aquilo que nos é dado para investir tem que ter retorno e tem que ser dirigido a favor das populações. Nesse sentido, a educação é fundamental para percebermos o tipo de capital humano que nós queremos para o futuro. E a cultura também.

Portanto, neste momento estamos a tentar mudar a atitude do cabo-verdiano perante o próprio ambiente de trabalho. Não basta ter um posto de trabalho ou um emprego, mas temos que ser produtivos. Esse é um dos maiores desafios.
    
Outro desafio é a falta de integração de Cabo Verde na nossa sub-região. Apesar da nossa posição estratégica e de sermos membro da CEDEAO, a nossa integração é meramente institucional por causa do tipo de diplomacia que nós temos estado a fazer. Uma diplomacia praticamente de captação de fundos quando Cabo Verde pode usar a sua posição geoestratégica para ser um grande supermercado de África em todos os sentidos. Nós podemos ser o interposto, com uma situação social privivegiada, onde o resto da África pode colocar os seus produtos para vender aos turistas de todo o mundo. As nossas empresas têm de ser competitivas, o nosso sistema fiscal tem de incentivar as empresas a se instaleram aqui em condições especiais. Temos de conseguir criar um parque industrial, capaz de transformar os nossos produtos: importar partes de automóveis e montar aqui para exportar para Europa, América, Brasil ou Ásia, por exemplo. Temos uma mão-de-obra muito jovem, neste momento, cada vez mais qualificada que é possível colocar no mercado a um preço muito a baixo daquilo que se pratica no mercado europeu.


O Senhor Ministro assumiu a carteira de Ministro da Cultura e Indústrias Criativas no passado mês de Abril. Quais são os desafios mais imediatos que o Ministro vai enfrentar como responsável do Ministério em relação ás infraestruturas culturais?

Neste momento o Ministério tem grandes desafios a respeito da melhor gestão patrimonial da Cidade Velha, Património da Humanidade e do Arquivo Nacional onde está toda a documentação da história cabo-verdiana. Não só o edifício está com algumas dificuldades fisicas como também o próprio modo como o cidadão tem acesso dado que, neste momento a grande maioria dos documentos não estão digitalizados, Em pleno século XXI nós temos o Arquivo Nacional em gavetas e caixas. A culpa é do Estado que ainda não agilizou as ferramentas para facilitar o acesso ao cidadão.

Temos também uma Biblioteca Nacional que precisa ser modernizado e ganhar novos formato. Precisa também ganhar dimensão nacional. Temos o desafio da internacionalização da música cabo-verdiana, da nossa literatura e das nossas artes em geral.


A maior indústria de Cabo Verde é o turismo, representando 24% do PIB e mais de 20% do emprego. Porém, como a Sua Excelência o Primeiro Ministro Correia e Silva mencionou, é um sector que precisa de se diversificar para se expandir para outros sectores como o turismo cultural. Quais são as virtudes com as que conta Cabo Verde, em termos de riqueza cultural e de património, para atrair o turista cultural?

A nível cultural, temos muitos produtos desde as festas de romaria, ao artesanato. Temos boas artes plásticas, boas artes performativas e temos um dos maiores festivais de teatro de toda África Ocidental que é o Mindelact.
Porém, a música é que é o nosso grande negócio. Temos mais de 22 festivais anuais organizados pelos municípios,incluindo um grande festival de música no Mindelo que é o Baía das Gatas, temos o Kriol Jazz festival que é uma referência internacional entre muitos outros.

Estamos a trabalhar agora na candidatura da morna como Património Imaterial da Humanidade. Tal como o fado, a morna pode ser também um grande atrativo, quando classificado como Património da Humanidade para que os turistas venham fazer o roteiro interpretativo da morna. Porque não é só ouvir as pessoas a cantar a morna, é preciso entender o que significa a morna na constituição da personalidade e da história cabo-verdiana dentro das influências de todas as raças e nacionalidades que passaram por cá.
Além da Morna, temos também o funaná que é o género da ilha de Santiago por excelência, representado pela gaita e pelo ferrinho. O batuque que é o mais ancestral, provavelmente das grandes casas de escravos de Cabo Verde, tocado por mulheres e que transformou-se neste momento num instrumento de emancipacipação. Temos a tabanca que é uma espécie de desfile de Carnaval, mas enraizado na nossa história colonial onde se representa as várias hierarquias sociais e se ironizam os acontecimentos da época. Faz parte do rol das festas Juninas. Na ilha do Fogo temos as festas de Banderona, ligados a festa de Nhô São Filipe. Em Santo Antão e Brava temos as Festas de São João Baptista. Em Cabo Verde é engraçado porque em todas as festas religiosas, cria-se ao lado, uma festa pagã ironizando as festas das casas senhoriais. Da mesma forma, as festas de São João Baptista têm por base um outro ritmo musical cabo-verdiano, que é o kolá-san-jon. Um turista que vai a Santo Antão vai tocar de forma diferente de um turista que vai ao Fogo. Isto promove uma vaierdade de opções. É preciso explicitar que existe essa diversidade. Temos ainda o Carnaval de Mindelo e do S. Nicolau que são referenciados como de alta qualidade e que atraem anualmente milhares de pessoas em Cabo Verde e da diáspora.

Eu creio que a experiência Cabo Verde deve passar muito mais pelo contato com o povo, com a nossa história. Dos cemitérios judeus às ruinas de Cidade Velha e à sinagoga de Santo Antão ou ainda aos “julanguees” que são os fortes criados pelos escravos quando fugiam da Cidade Velha.


Em termos de cultura e experiências culturais, os turistas ficam normalmente nos complexos all-inclusive, disfrutando as águas e as praias sem saber muitas vezes o que o país tem para oferecer a nível cultural ou sem poder ter acesso a essa oferta porque não há pacotes, roteiros ou atividades que facilitem a sua acessibilidade. Como vai fazer o Ministério para mudar essa percepção e encorajar um turismo mais diversificado?

Neste momento, o novo Ministro da Economia e Emprego tem a consciência que a única maneira de dar mais-valia ou de capitalizar aquilo que são as nossas praias, as nossas montanhas, as nossas condições naturais é acrescentá-las como um produto cultural de qualidade.

O que falta em Cabo Verde? Organizar essas tendências e fazer com que rendam através dos direitos autorais, casas de música, restaurantes ou roteiros culturais. É preciso dar qualidade e passar a informação de forma organizada. Criar marcas associadas aos produtos caboverdianos e introduzi-las no circiuito.
Neste momento estamos a fazer, através de antropólogos e arqueólogos do Instituto de Promoção Cultural, o resgate da memória do batuque e da tabanca. Nós vamos pesquisar e passar às pessoas a memória do batuque e tabanca, como era antigamente para resgatarmos as características iniciais e poder colocar essas tradições num roteiro turístico com produtos autênticos.

Outro exemplo é o Carnaval de São Vicente. Toda a ilha pára para viver o Carnaval. Então em vez de darmos um subsídio, na semana do Carnaval, nós fizemos um edital onde vamos financiar 15 mil euros a cada grupo por ano. Desbloqueando esses 15 mil euros garantindo que nos 7 meses antes do Carnaval haja gente empregada. Até ao ano passado, um mês antes do Carnaval, os grupos não sabiam se íam sair ou não para desfilar porque não tinham acesso ao financiamento. Apartir de agora vamos financiar e, ao mesmo tempo que lançamos os editais, estamos em contacto com o Ministério da Economia e Emprego para contactarmos os operadores e as agências de viagem nacionais e internacionais para que vendam pacotes incluindo o Carnaval como produto, bem estruturado.
Vamos garantir isso na ilha de São Vicente e na ilha de São Nicolau onde também há um Carnaval de qualidade, mas numa outra lógica mais associativista e de trabalho comunitário. Nos últimos quatro anos lançou-se o Atlântico Music Expo, o primeiro mercado de musica feita no Atlântico em África onde convidamos produtores e músicos de todo mundo para reunirem-se aqui durante três dias para fazerem negócios.

Essa é mentalidade que nós queremos criar, mas o essencial não foi feito. Cabo Verde neste momento não tem um sistema de regulação e cobrança e distribuição dos diretos autorais que é uma prioridade máxima do Ministério. Neste momento vamos ter uma cooperação com Portugal e com Luxemburgo no sentido de instalarmos a nossa unidade de regulação, cobrança e distribuição dos direitos autorais. Inicialmente será através do Ministério e depois vamos fazer a sua distribuição através das sociedades de direitos autorais.


A cultura não tem que ser um recurso só para os turistas, mas também para os cabo-verdianos, para que possam enriquecer-se e para que possam continuar com a cadeia de transmissão da cultura e eventualmente ser os artistas ou os empresários das industrias criativas do futuro. Como está o Ministério a fazer para dar acesso à cultura aos cabo-verdianos?

Desde o tempo do colonialismo a escola sempre foi prioridade e foi a única escapatória para a ascensão social. Ninguém nasce rico em Cabo Verde. As pessoas que conseguiram fazer algum dinheiro são pessoas que estudaram e a escola foi a forma de ascensão social para os cabo-verdianos pobres. Por isso hoje também nós queremos mandar os nossos músicos para escola, para poderem ambicionar não só tocar a música de Cabo Verde, mas também poderem fazer parte de orquestras internacionais. Por isso agora, abrimos a academia Cesária Évora como academia de artes aqui na Praia.

Vamos criar bolsas para a cultura, financiando o acesso a aulas de arte, de ballet, de pintura, de teatro, de piano, de guitarra. Através da bolsa da cultura, jogamos em duas vertentes: ajudamos os alunos a ter acesso a cultura e ao ensino artístico e financiamos as escolas garantindo a sustentabilidade das iniciativas privadas.


Dentro das suas responsabilidades está o impulso das indústrias criativas no país. A cultura é o segundo maior produto de exportação, detrás das pescas, dando trabalho a 10,6% da população, a maioria no subsector da música. O Senhor declarou a sua vontade de procurar incubar empresas culturais nacionais que possam “associar a criatividade à geração de empregos, receitas e bem-estar”. Quais são os instrumentos com os quais o Governo conta para impulsionar esse tipo de indústrias com tanto potencial no país? Quais são as áreas da cultura que o Governo vai privilegiar?

Neste momento estamos numa fase de capacitação com as formações patrocinadas pela UNESCO, a cooperação espanhola, e portuguesa. Nós vamos criar formações base para dar aos agentes turísticos, ás empresas, aos hotéis.
Nós temos esses produtos culturais de que já falamos, agora é preciso que haja também investimentos privados. Nós fazemos o trabalho duro que é o resgate dos conhecimentos com o trabalho do Instituto de Promoção Cultural. Basicamente nós estamos neste momento num momento de reintroduzir técnicas endógenas, cabo-verdianas, mas agora comnovas tecnologias, novo design e novos mercados.
Atualmente não encontra produto de artesanato típico cabo-verdiano nas lojas e na rua. Aqueles que existem carecem de uma correcta produção, apreentção e comercialização. Através do Centro Nacional de Desenho e Artesanato, que tem o centro no Mindelo, estamos a encorajar a criação de planos de neócios melhor elaborados para apresentar os nossos produtos de forma que sejam mais atractivos e voltados para o mercado turístico. Temos o M_EIA [Mindelo Escola Internacional de Arte] que também já está a introduzir novas formas de abordagem artística ao artesanato, ao barro, a tecelagem e a própria pintura.

Agora é preciso que a sociedade civil tenha a capacidade de pegar isso como uma oportunidade de negócio. O único produto bem desenhado e acabado que temos é a música. Todo o resto do artesanato, da moda à joalharia são áreas ainda a serem desenvolvidas. Podemos importar a melhor da tecnologia para fazer novas peças de design cabo-verdiano. E em Cabo Verde não temos esta pretensão de fazer coisas que sejam só cabo-verdianas; nós somos fruto de uma mistura muito grande e podemos buscar influências de várias origens para que seja feito em Cabo Verde e para sejam cabo-verdiano.


Na cerimónia de aniversário da Independência de Cabo Verde no passado 5 de Julho ouvimos muito falar do conceito de cabo-verdianidade A cultura e expressões culturais, as idiossincrasias são o que definem a natureza de um povo. Quais são as características dessa cabo-verniadidade?

Eu acho que o cabo-verdiano é ainda um ser entre mundos. Há sempre essa dicotomia entre ser-se mais africano ou ser-se mais Europeu. Pela influência que a diáspora sempre exerceu, temos a tendência de dizer que somos mais ligados ao Ocidente. Mas basta pisar Senegal, ou ir a Costa do Marfim, ou a Ghana, ou a Guiné Conacri para percebermos o quanto de africano temos. Nós temos andado desligados e desconectados de Africa mas Cabo Verde precisa se unir a África. Eu sou um otimista em relação a Africa e a nossa grande opção estratégica será estarmos ligados a Africa. Nós como africanos nunca seremos completamente europeus mas em África seremos completamente africanos, porque há uma maior disponibilidade para aceitarmos uns aos outros.

Enquanto à definição de cabo-verdianidade acho que é um conceito sempre incompleto. Dependendo da experiência de cada um de nós, de onde estudamos, em que ilha nascemos, haverá uma definição de cabo-verdianidade. Ser cabo-verdiano é ser-se  incompleto em termos de identidade. Mas uma coisa é certa: qualquer cabo-verdiano sente que o único lugar onde nos sentimos verdadeiramente felizes é em Cabo Verde. Nós podemos ir a qualquer lado do mundo, vivermos bem, realizarmo-nos profissionalmente, mas a saudade está sempre lá.


O Senhor Ministro é um experto na comunicação e como tal sabe da importância da imagem. Para seduzir a comunidade investidora internacional, um dos objetivos do seu Governo, as bases económicas fortes são essenciais, mas também o é a confiança e a imagem internacional do país. Qual é a imagem que Senhor Ministro acha que a comunidade internacional tem de Cabo Verde e qual é imagem que o Senhor gostaria que a comunidade internacional tivesse? Como melhorar essa imagem?

Independentemente das fases políticas, tanto os partidos como os cabo-verdianos, conseguimos transmitir essa ideia de que somos um país estável, bem governado, onde as coisas funcionam e conseguimos chegar a um consenso sobre os assuntos essenciais. Esta é uma excelente imagem para nos enquadrar no mundo. Eu acho que Cabo Verde comparativamente aos países ainda em desenvolvimento é um excelente exemplo.
Porém, não temos que ter esses espirito de comparar com os menos exemplares. Temos que nos comparar com os mais exemplares. Em termos estatiscos, de qualidade de vida, de acesso a bens culturais, de liberdade económica, de democracia económica, de acesso ao crédito e ao rendimento eu quero ser comparado com os Estados Unidos, com alguns países da Europa ou com a eficiente Singapura.

Não podemos continuar a depender do exterior. Mas parece que essa tem sido a nossa sina. Apesar de não termos recursos naturais, pelo seu capital humano Cabo Verde pode aspirar ser um país onde a competência, o mérito, a eficiência e o gasto minucioso do dinheiro público pode ser ainda mais exemplar. Os funcionários que façam parte do Estado tem que servir, servir e servir. Podemos criar modalidades em que os funcionarios possam ser compensados de acordo com a sua produtividade. E para isso, temos que diminuir a burocracia, diminuir o número de instituições.

Sempre temos que tentar melhorar e, para mim, as instituições têm de ser mais eficientes, produtivas e um lugar onde o trabalho duro seja o núcleo dos nossos valores. Temos de incutir no funcionalismo público e a ideia de que é preciso servir bem os cidadãos, que é preciso prestar contas e não gastar impunemente o dinheiro dos cidadãos.
Temos que aspirar ser um país altamente transparente. Isso passa por uma ética de serviço público completamente diferente daquilo que tem sido posto em prática. Temos de efectivar a prestação de contas. Tudo o que o Ministério financia é publicado para que as pessoas saibam o quê e quanto se financiou a cada instituição, a cada festival, a acada evento, a cada sector. É transparente e claro.

Bons resultados não passam por ter as pessoas a aplaudirem, mas sim as instituições a funcionarem.


An interview conducted by Alejandro Dorado Nájera (@DoradoAlex) and Diana Lopes.